sábado, 17 de setembro de 2011

Sombras Da Noite

Sombras da Noite


Stephen King reúne aqui 19 de seus mais inquietantes contos- relatos de acontecimentos bizarros e atos impensáveis, surgindo daquela região crepuscular onde ruídos nas paredes e sombras perto da cama prenunciam algo terrível que ronda à solta.
Os cenários são familiares e acima de qualquer suspeita - um colégio, uma fábrica, uma lanchonete rodoviária, uma lavanderia, um milharal. Mas no mundo de Stephen King, qualquer lugar pode servir como território sobrenatural. Só é necessária uma hora propícia da noite e a distração das vitimas.

TRECHO DO LIVRO
Jerusalem’s Lot

2 de outubro de 1850
CARO BONES,
Como foi bom penetrar no saguão frio e arejado aqui de Chapelwaite, todos os ossos doendo por causa daquela abominável carruagem, necessitando de um alívio imediato de minha bexiga inchada — e ver uma carta endereçada com o seu próprio e inimitável garrancho sobre a horrível mesinha de cerejeira ao lado da porta! Esteja certo de que me pus a decifrá-la assim que as necessidades do corpo foram satisfeitas (num banheiro no andar de baixo, friamente decorado, onde eu podia ver meu hálito subindo diante dos meus olhos).
Fico feliz por saber que você se recuperou do miasma que durante tanto tempo esteve instalado em seus pulmões, embora lhe garanta que na verdade simpatizo com o dilema moral em que a cura o deixou. Um abolicionista enfermo curado pelo clima ensolarado da escravagista Flórida! Ainda assim, Bones, peço-lhe, como um amigo que também caminhou pelo vale das sombras, que se cuide e não se aventure de volta a Massachusetts até que seu corpo lhe dê permissão. Sua mente lúcida e
sua pena incisiva não nos servem para nada se você regressar ao pó, e se o Sul é uma região capaz de curá-lo, não há uma justiça poética nisso?
Sim, a casa é tão bonita quanto fui levado a crer pelos testamenteiros do meu primo, mas bem mais sinistra. Fica no alto de um imenso e saliente promontório a talvez uns 2 quilômetros ao norte de Falmouth e a uns 6 quilômetros ao norte de Portland. Atrás dela há cerca de um hectare e meio de terra, dominado outra vez pela natureza da maneira mais formidável que se poderia imaginar — juníperos, cipós, arbustos e várias formas de trepadeiras sobem desordenadamente pelos pitorescos muros de pedra que separam a propriedade das terras municipais. Horrorosas imitações da estatuaria grega espiam às cegas através de todo esse mato, no alto de várias pequenas colinas — parecem, na maioria dos casos, prestes a investir contra o passante. O gosto do meu primo Stephen parece ter percorrido toda a escala desde o inaceitável até o claramente horrível. Há uma casinha de verão esquisita que foi quase soterrada pelo sumagre escarlate e um grotesco relógio de sol no meio do que outrora deve ter sido um jardim. Ele dá o toque lunático final.
Porém a vista do salão mais do que justifica tudo isso; tenho um panorama vertiginoso dos rochedos ao pé do promontório de Chapelwaite e do próprio Atlântico. Uma imensa janela saliente abre-se para essa paisagem, a cujo pé fica uma imensa secretária, de forma semelhante a um sapo. Vai ser ótimo para o começo daquele romance sobre qual venho falando faz tanto tempo (e sem dúvida cansativamente).
Hoje o dia esteve cinzento com ocasionais períodos de chuva fina. Tudo parece aos meus olhos ser um estudo em cinza escuro — as rochas, velhas e gastas como o próprio Tempo, o céu, e, é claro, o mar, a arrebentar contra as presas de granito lá embaixo com um som que não é precisamente som, mas vibração — posso sentir as ondas sob os meus pés no instante mesmo em que escrevo. A sensação não é de todo desagradável.
Sei que você desaprova meus hábitos solitários, caro Bones, mas asseguro-lhe de que estou bem e feliz. O Calvin está comigo, prático, silencioso e digno de confiança como sempre, e lá pelo meio da semana tenho certeza de que nós dois já teremos arranjado nossos negócios e tomado providências para as entregas necessárias da cidade — e uma equipe de faxineiras para começar a tirar a poeira deste lugar!
Vou terminar — há tantas coisas mais para ver, quartos a explorar, e sem dúvida mil peças de execrável mobília para serem contempladas por estes olhos delicados. Mais uma vez, meus agradecimentos pelo toque familiar trazido pela sua carta, e pela sua constante consideração.
Mande meu apreço à sua mulher, já que vocês dois o têm.
CHARLES.

6 de outubro de 1850
CARO BONES,
Que lugar, este aqui!
Continua a me surpreender — tanto quanto as reações dos moradores da aldeia mais próxima à minha presença. É um lugarzinho esquisito com o nome pitoresco de Preacher’s Corners. Foi lá que Calvin fez um acordo para o envio das provisões semanais. Da outra incumbência, a de garantir um suprimento suficiente de lenha para o inverno, ele também cuidou. Mas Cal voltou com um rosto sombrio, e quando lhe perguntei qual era o problema, ele respondeu, de um modo bem sinistro:
— Acham que o senhor é maluco, Sr. Boone!
Ri e disse que talvez tivessem ouvido falar da febre cerebral que me acometeu após a morte da minha Sarah — com certeza eu falava de um jeito bem maluco naquela época, como você pode comprovar.
Mas Cal alegou que ninguém sabia de coisa alguma a meu respeito exceto por intermédio do meu primo Stephen, que havia contratado os mesmos serviços que eu agora tomava providências para assegurar.
— O que disseram, senhor, é que qualquer um capaz de morar em Chapelwaite ou deve ser maluco ou corre o risco de se tornar um.
Isso me deixou totalmente perplexo, como você pode imaginar, e perguntei quem lhe dissera coisa tão surpreendente. Ele me disse que se referia a um madeireiro carrancudo e algo embriagado chamado Thompson, proprietário de 160 hectares de pinheiros, bétulas e abetos, que derruba e transporta a madeira com a ajuda de seus cinco filhos, para vendê-la às fábricas em Portland e aos proprietários das imediações.
Quando Cal, ignorante de seu estranho preconceito, informoulhe a localidade em que a madeira deveria ser entregue, esse tal de Thompson encarou-o de queixo caído e disse que mandaria os filhos com a madeira, durante a segura luz do dia e pela estrada que acompanha o mar.
Calvin, aparentemente tomando a minha perplexidade por aflição, apressou-se em dizer que o homem fedia a uísque barato e que havia então mergulhado num falatório sem sentido sobre uma aldeia abandonada e os parentes do primo Stephen — e vermes! Calvin terminou seus negócios com um dos filhos de Thompson, que, presumo, foi bastante ríspido e não estava nem um pouco mais sóbrio ou com o odor mais agradável. Também presumo que houve reações semelhantes na própria Preacher’s Corners, na mercearia, com cujo dono Cal falou, embora neste caso os comentários tenham sido mais no estilo da fofoca,
do disse-me-disse.
Nada disso me incomodou muito; sabemos como essa gente rústica adora enriquecer suas vidas com o cheiro do escândalo e do mito, e suponho que o pobre Stephen e esta parte da família sejam um prato cheio. Como disse para o Cal, um homem que morre caindo praticamente do seu próprio pórtico de entrada provavelmente vai dar o que falar.
A casa em si é uma surpresa constante. Vinte e três quartos, Bones! Os lambris que revestem os pisos no andar de cima e a galeria dos retratos estão embolorados, mas ainda são sólidos. Enquanto eu estive no quarto do meu finado primo, no andar de cima, podia ouvir os ratos correndo por trás dos lambris, e devem ser ratos grandes, pelo barulho que fazem — é quase como se houvesse gente andando ali. Detestaria encontrar um deles no escuro; aliás, mesmo no claro. Não notei, entretanto, nem buracos nem excrementos. Estranho.
A galeria no andar de cima é recoberta por retratos ruins em molduras que devem valer uma fortuna. Alguns assemelham-se com Stephen, tal como me lembro dele. Acredito ter identificado corretamente meu tio Henry Boone e sua mulher Judith; e os outros não são familiares. Suponho que um deles seja o meu notório bisavô, Robert. Mas o lado de Stephen da família é praticamente desconhecido para mim, o que lamento do fundo do coração. O mesmo bom humor estampado nas cartas de Stephen para Sarah e para mim, a mesma luz do intelecto elevado brilham nesses retratos, por piores que sejam. Por que razões tolas as famílias brigam! Um escritoire arrombado, palavras duras entre irmãos hoje mortos há três gerações, e descendentes sem qualquer culpa encontram-se desnecessariamente afastados. Não posso evitar refletir sobre como foi uma grande sorte você e John Petty terem conseguido contactar Stephen quando parecia que talvez eu fosse acompanhar minha
Sarah, atravessando os Portões — e sobre como foi um grande azar o fato de que o destino nos roubasse um encontro face a face. Como eu teria adorado ouvi-lo defender a estatuaria e a mobília ancestrais!
Mas não quero denegrir este lugar ao extremo. O gosto de Stephen não era o meu, verdade, mas abaixo da superfície de suas aquisições há peças (algumas delas protegidas por capas, nos aposentos superiores) que são verdadeiras obras de arte. Há camas, mesas e volutas pesadas e escuras feitas em teca e mogno, e muitos dos quartos e salas de recepção, o escritório no andar de cima e a pequena sala de visitas têm um charme sombrio. Os pisos são de pinho de excelente qualidade, que brilha com uma luz interna e secreta. Há dignidade aqui; dignidade e o peso dos anos. Ainda não posso dizer que gosto do lugar, mas respeito-o. Estou ansioso para observá-lo mudar, conforme atravessemos as mudanças deste clima setentrional.
Deus, não paro de falar! Escreva em breve, Bones. Conte-me sua melhora, e dê-me as notícias que tiver da Petty e do resto. E por favor, não cometa o erro de tentar convencer algum novo conhecido sulista a adotar seus pontos de vista por imposição demasiada — suponho que nem todos se contentem em responder apenas com a boca, como o nosso prolixo amigo, Sr. Calhoun.

Seu afetuoso amigo,
CHARLES.

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