quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

A Maldição do Tigre Capitulo 3


3

As crianças deixaram o circo fazendo um tumulto estridente. Um ônibus deu a partida no estacionamento. Enquanto ele despertava ruidosamente, sibilando e soltando fumaça pelo cano de descarga, Matt se levantou e espreguiçou-se.
-  Pronta para o trabalho de verdade?
Gemi, sentindo os músculos dos braços já doloridos.
-  Claro. Vamos lá.
Ele começou a limpar a sujeira das cadeiras, que eu ia empurrando contra a parede. Depois me entregou uma vassoura.
-  Agora temos que varrer a área toda, guardar tudo nas caixas e então arrumá-las novamente. Você começa enquanto vou entregar o dinheiro ao Sr. Maurizio.
-  Sem problemas.
Comecei a percorrer o lugar lentamente, empurrando a vassoura à minha frente. Minha mente voltou aos números circenses que eu vira. Gostara mais dos cães, mas havia algo de irresistível no tigre. Meus pensamentos conti­nuavam voltando ao grande felino.
Como será ele de perto? E por que cheira a sândalo? Eu nada sabia sobre tigres, exceto o que vira tarde da noite nos canais de documentários e lera em exemplares antigos da National Geographic. Eu nunca havia me inte­ressado por tigres, mas, por outro lado, também nunca trabalhara em um circo.
Eu já tinha quase terminado de varrer quando Matt voltou. Ele se abaixou para me ajudar a recolher o gigantesco monte de lixo antes de passarmos uma boa hora arrumando caixas e arrastando-as de volta ao depósito.
Com esse trabalho pronto, Matt me disse que eu podia ter uma ou duas horas de folga até a hora de me juntar à trupe para o jantar. Eu estava ansiosa para ter algum tempo para mim, assim corri de volta à tenda.
Troquei de roupa, encontrei um lugar apenas ligeiramente desconfortá­vel na cama e peguei meu diário. Enquanto mordiscava a caneta, eu refletia sobre as pessoas interessantes que havia conhecido ali. Estava claro que o pessoal do circo se considerava uma família. Várias vezes vi as pessoas oferecendo ajuda, mesmo que não fosse tarefa sua. Também escrevi um pouco sobre o tigre. O felino realmente chamou minha atenção. Talvez eu devesse trabalhar com animais e estudá-los na faculdade, pensei. Então me lembrei de minha extrema aversão a biologia e soube que eu nunca me daria bem naquela área.
Estava quase na hora do jantar. O cheiro delicioso vindo do prédio maior fez minha boca se encher de água.
Nada parecido com os biscoitos vegans de Sarah, pensei. Na verdade, lem­bra a comida da minha avó.
Lá dentro, Matt arrumava as cadeiras em torno de oito mesas dobráveis compridas. Uma das mesas estava posta com comida italiana. O aspecto era fantástico. Ofereci ajuda, mas Matt me dispensou.
-  Você trabalhou duro hoje, Kelsey. Relaxe. Eu faço isso - disse ele.
Cathleen acenou, me chamando.
-  Venha se sentar comigo. Só podemos começar a comer depois que o Sr. Maurizio fizer os anúncios da noite.
E, no momento em que nos sentamos, o Sr. Maurizio entrou dramatica­mente no recinto.
-  Favolosa performance, de todos vocês! E um trabalho eccellente de nossa mais nova vendedora, hein? Esta noite é uma celebração! Encham os pratos, mia famiglia!
Dei uma risadinha. Hum. Ele representa o papel o tempo todo, não só du­rante o espetáculo.
Virei-me para Cathleen.
-  Acho que isso quer dizer que fizemos um bom trabalho, não é?
-  É, sim. Vamos comer! - respondeu ela.
Entrei na fila com Cathleen, peguei meu prato de papel e o enchi com salada verde italiana, uma boa colherada de massa em formato de conchas recheadas com espinafre e queijo cobertas com molho de tomate, frango à parmegiana e, sem ter lugar suficiente no prato, enfiei um pão quente na boca, peguei uma garrafa de água e me sentei. Não pude deixar de notar a grande cheesecake de chocolate para a sobremesa, mas não consegui nem terminar a comida que tinha no prato.
Depois do jantar, fui até um canto mais silencioso do prédio e liguei para dar notícias a Sarah e Mike. Quando desliguei, aproximei-me de Matt, que guardava as sobras na geladeira.
-  Não vi seu pai no jantar. Ele não come?
-  Levei um prato para ele. Estava ocupado com o tigre.
-  Há quanto tempo seu pai trabalha com aquele tigre? - perguntei, curiosa.
-  Segundo a descrição do emprego, devo ajudá-lo com isso.
Matt empurrou para o lado uma garrafa meio vazia de suco de laranja, enfiou uma caixa de comida para viagem ao lado dela e fechou a geladeira.
-  Há uns cinco anos, mais ou menos. O Sr. Maurizio comprou o tigre de outro circo, que o havia comprado de outro circo antes. Ninguém conhece a história completa dele. Papai diz que o tigre faz só os truques básicos e se recusa a aprender qualquer coisa nova, mas o lado bom é que ele nunca deu nenhum problema. É uma fera tranquila, quase dócil, tanto quanto os tigres podem ser.
-  Então, o que eu tenho que fazer? Vou mesmo dar comida a ele?
-  Não se preocupe. Não é assim tão difícil, desde que você evite as presas - zombou Matt. - Estou brincando. Você só vai levar a comida do tigre de um prédio ao outro. Converse com meu pai amanhã. Ele dará todas as infor­mações de que precisa.
-  Obrigada, Matt!
Ainda restava uma hora de luz do dia lá fora, mas eu teria que levantar cedo outra vez. Depois de tomar um banho, escovar os dentes, vestir meu pijama de flanela quentinho e calçar os chinelos, corri para minha tenda e me aconcheguei sob a colcha da minha avó. Ler um capítulo do livro que eu trouxera me deixou sonolenta e logo mergulhei em um sono profundo.
Na manhã seguinte, após o café, corri até o canil e encontrei o pai de Matt brincando com os cães. Parecia uma versão adulta de Matt, com os mesmos cabelos e olhos castanhos. Ele se voltou para mim quando me aproximei e disse:
-  Olá. Você é a Kelsey, certo? Será minha assistente hoje.
-  Sim, senhor.
Ele apertou minha mão com simpatia e sorriu.
-  Pode me chamar de Andrew ou Sr. Davis, se preferir algo mais formal.
A primeira coisa que precisamos fazer é levar estas criaturinhas cheias de energia para dar uma volta.
-  Parece bastante fácil.
Ele riu.
-  Veremos.
O Sr. Davis me deu guias para prender nas coleiras de cinco cães. Os ani­mais eram de uma interessante variedade de raças. Tinha um beagle, um mestiço de galgo, um buldogue, um dinamarquês e um poodlezinho preto. Eles saltitavam o tempo todo, enroscando as guias uns nos outros - e em mim. O Sr. Davis se abaixou para me ajudar e então partimos.
O dia estava lindo. Os cães pareciam muito felizes, saltando de um lado para outro e me puxando em todas as direções, exceto naquela que eu queria seguir.
Enquanto eu desvencilhava um deles de uma árvore, indaguei ao Sr. Davis:
-  Posso fazer algumas perguntas sobre o seu tigre?
-  Claro.
-  Matt disse que vocês não sabem muito sobre a história dele. Como Dhiren veio parar no circo?
O pai de Matt esfregou o queixo coberto pela barba espetada e disse:
-  O Sr. Maurizio comprou Dhiren de outro circo pequeno, querendo dar uma renovada no espetáculo. Pensou que, como eu trabalhava bem com ou­tros animais, faria o mesmo com o tigre. Fomos muito ingênuos. Em geral é preciso muito treinamento para trabalhar com grandes felinos. O Sr. Maurizio insistiu que eu tentasse e, felizmente, nosso tigre é bastante tranquilo.
-  Que sorte, hein?
-  Muita sorte. Eu era extremamente despreparado para assumir um ani­mal daquele tamanho, por isso viajei com o outro circo por um tempo. O domador deles me ensinou a lidar com o tigre e eu aprendi a cuidar do ani­mal. Acho que não teria sido capaz de lidar com qualquer outro dos felinos que eles estavam vendendo.
-  Imagino.
-  Até tentaram fazer com que eu me interessasse por um dos tigres siberianos, mais agressivo, mas logo percebi que ele não era para nós. Então ne­gociei o tigre branco. Seu temperamento era mais estável e ele demonstrava gostar de trabalhar comigo. Para ser sincero, nosso tigre parece entediado a maior parte do tempo.
Ponderei essa informação enquanto percorríamos a trilha em silêncio. Desembaraçando os cães de outra árvore, perguntei:
-  Os tigres brancos vêm da Índia? Pensei que viessem da Sibéria.
O Sr. Davis sorriu.
-  Muita gente acha que eles vêm da Rússia porque a pelagem branca se mistura com a neve, mas os tigres siberianos são maiores e alaranjados. O nosso é uma variante branca do tigre-de-bengala.
Ele me olhou, pensativo, por um momento e então perguntou:
-  Quer me ajudar com o tigre hoje? Não precisa ter medo. As jaulas têm trincos de segurança e eu a supervisionarei o tempo todo.
Sorri, lembrando do doce aroma de jasmim no fim da apresentação do tigre. Um dos cães correu em volta das minhas pernas, me enroscando com a guia e quebrando o devaneio por um momento.
-  Gostaria muito. Obrigada! - agradeci.
Depois de terminar a caminhada, pusemos os cães de volta no canil e demos comida a eles.
O Sr. Davis encheu o bebedouro dos cães com água de uma mangueira verde. Então olhou por sobre o ombro e disse:
-  Sabe, os tigres podem ser completamente extintos em 10 anos. A Índia já aprovou diversas leis proibindo que sejam mortos. Os caçadores e os al­deões são os principais envolvidos. Os tigres em geral evitam os homens, mas são responsáveis por muitas mortes na Índia todos os anos e as pessoas às vezes querem fazer justiça com as próprias mãos.
Nesse momento o Sr. Davis acenou para que eu o seguisse. Demos a volta no prédio, chegando a um amplo galpão pintado de branco com remates azuis. Ele abriu as portas largas para que entrássemos.
O sol forte invadia e aquecia o lugar, iluminando as partículas de poeira que subiam à medida que o Sr. Davis e eu passávamos. Fiquei surpresa com a quantidade de luz que havia na construção de dois andares, apesar de ali só haver duas janelas altas. Vigas grossas erguiam-se bem acima de nossas cabeças e cruzavam o teto em arco, e junto às paredes alinhavam-se baias va­zias onde se viam fardos de feno empilhados até o teto. Eu o segui enquanto ele se aproximava do lindo vagão para animais que fizera parte da apresen­tação do dia anterior.
Ele apanhou uma garrafa grande de vitaminas em forma líquida e disse:
-  Kelsey, quero que conheça Dhiren. Venha aqui. Vou lhe mostrar uma coisa.
Nós nos aproximamos da jaula. O tigre, que estivera cochilando, ergueu a cabeça e me olhou, curioso, com seus brilhantes olhos azuis.
Aqueles olhos eram hipnóticos. Eles se fixaram em mim, quase como se o tigre estivesse examinando a minha alma.
Uma onda de solidão tomou conta de mim, mas me esforcei para trancá-la novamente no cantinho onde guardo emoções desse tipo. Engoli em seco e desviei o olhar.
O Sr. Davis puxou uma alavanca na lateral da jaula. Um painel desceu, deslizando e isolando o lado da jaula onde Dhiren estava. O Sr. Davis abriu a porta da jaula, encheu o recipiente de água do tigre, acrescentou cerca de um quarto de xícara de vitaminas e então fechou e trancou a porta. Em seguida, acionou novamente a alavanca para erguer o painel no interior da jaula outra vez.
-  Tenho um pouco de trabalho burocrático para fazer. Quero que você busque o café da manhã do tigre - instruiu o Sr. Davis. - Volte ao edifício principal com este carrinho e procure uma geladeira grande atrás das caixas. Tire um pacote de carne e coloque-a no carrinho. Transfira outro pacote de carne do freezer para a geladeira, para descongelar. Quando voltar, ponha a comida de Dhiren na jaula exatamente como fiz com as vitaminas. Mas não se esqueça de fechar o painel de segurança primeiro. Consegue fazer isso?
Agarrei a alça do carrinho.
-  Sem problemas - falei por sobre o ombro enquanto saía.
Encontrei a carne rapidamente e poucos minutos depois estava de volta.
Espero que essa porta de segurança resista ou eu serei o café da manhã, pen­sei ao puxar a alavanca, servir a carne crua em uma tigela grande e deslizá-la com cuidado para dentro da jaula. Eu mantinha um olho cauteloso no tigre, mas ele simplesmente ficou ali parado me olhando.
-  Sr. Davis, esse tigre é macho ou fêmea?
Ouviu-se um barulho na jaula, um ronco profundo vindo do peito do felino.
Virei-me para olhar o tigre.
-  Por que você está rugindo para mim?
O pai de Matt riu.
-  Ah, você o ofendeu. Ele é muito sensível, sabia? Respondendo à sua pergunta, ele é macho.
-  Humm.
Depois que o tigre comeu, o Sr. Davis sugeriu que eu observasse o animal praticar seu número. Fechamos as portas do galpão e deslizamos as traves de madeira para trancá-las e impedir que o tigre escapasse. Então subi a escada de mão até o mezanino para assistir de cima. Se alguma coisa desse errado, o Sr. Davis me instruíra a sair pela janela e chamar o Sr. Maurizio.
O pai de Matt se aproximou da jaula, abriu a porta e chamou Dhiren. O tigre olhou para ele e então pôs a cabeça de volta sobre as patas, sonolento. O Sr. Davis tornou a chamá-lo.
-  Venha!
A boca do tigre se abriu em um bocejo e suas mandíbulas se escancara­ram. Estremeci ao ver os dentes imensos. Ele se levantou e esticou as patas dianteiras e em seguida as traseiras, uma de cada vez. Ri ao comparar men­talmente esse grande predador com um gatinho dorminhoco. O tigre deu meia-volta e desceu pela rampa, saindo da jaula.
Depois de ajeitar uma banqueta, o Sr. Davis estalou o chicote, instruindo Dhiren a saltar. Então pegou a argola e fez o tigre pular por ela durante vá­rios minutos. O animal saltava de um lado para outro, passando com facili­dade pelas várias atividades. Seus movimentos não demonstravam o menor esforço. Eu podia ver seus músculos vigorosos movendo-se sob o pelo lis­trado preto e branco enquanto praticava o seu número.
O Sr. Davis parecia um bom domador, mas por uma ou duas vezes per­cebi que o tigre podia ter levado a melhor sobre ele. Num dado momento, o rosto do Sr. Davis ficou muito perto das garras estendidas do tigre e teria sido muito fácil para o animal atingi-lo, mas, em vez disso, ele tirou a pata do caminho. Em outra ocasião, eu podia jurar que o Sr. Davis havia pisado em sua cauda, no entanto, o tigre apenas grunhiu suavemente e deslizou a cauda para o lado. Aquilo era muito estranho e eu me vi ainda mais fascinada pelo belo animal, imaginando como seria tocá-lo.
O galpão estava abafado e o Sr. Davis transpirava visivelmente. Ele incitou o tigre a voltar para a banqueta e então dispôs mais três banquetas perto da primeira e o fez saltar de uma para outra. Ao terminar, levou o felino de volta para a jaula, deu-lhe um petisco especial e fez sinal para que eu descesse.
-  Kelsey, é melhor você ir para o edifício principal e ajudar Matt a se pre­parar para o espetáculo. Hoje teremos um grupo da terceira idade vindo de um centro comunitário.
Desci a escada.
-  Tudo bem se eu trouxer meu diário até aqui para escrever de vez em quando? Quero desenhar o tigre.
-  Tudo bem - disse ele. - Só não chegue muito perto.
Saí correndo do galpão, acenei para ele e gritei:
-  Obrigada por me deixar assistir ao ensaio. Foi muito emocionante!
Cheguei correndo para ajudar Matt no momento em que o primeiro ôni­bus parava no estacionamento. Foi exatamente o oposto do dia anterior. Pri­meiro, a mulher responsável pelo grupo comprou todos os ingressos de uma vez só, o que tornou meu trabalho muito mais fácil, e então todos os espectadores se dirigiram devagar para dentro, acomodaram-se em seus lugares e logo caíram no sono.
Como eles podem dormir em meio a todo esse barulho? No intervalo, não havia muito a fazer. Metade dos espectadores ainda estava dormindo, e a outra metade aguardava na fila do banheiro. Na verdade, ninguém comprou nada.
Depois do espetáculo, Matt e eu limpamos tudo num piscar de olhos, o que me deu algumas horas de folga. Corri de volta para a cama, peguei meu diário, uma caneta, um lápis e minha colcha e me dirigi ao galpão. Abri a pesada porta e acendi as luzes.
Fui andando até a jaula do tigre e o encontrei descansando com a cabeça apoiada nas patas. Dois fardos de feno formavam uma boa cadeira com es­paldar. Abri a colcha sobre o colo e peguei o diário. Depois de escrever al­guns parágrafos, comecei a desenhar.
Tivera aulas de arte no ensino médio e meus desenhos com modelo eram bastante razoáveis. Peguei o lápis e olhei para o tigre. Ele me encarava - mas não como se quisesse me devorar. Era mais como... como se estivesse ten­tando me dizer alguma coisa.
-  Oi. Está olhando o quê? - perguntei, sorrindo.
Voltei ao desenho. Os olhos redondos do tigre eram bem separados e de um azul intenso. Ele tinha cílios longos e negros, e um focinho rosado. Seu pelo era de um branco leitoso, com riscas negras propagando-se a partir da testa e da face até a cauda. As orelhas curtas e peludas estavam inclinadas na minha direção e sua cabeça descansava preguiçosamente nas patas. En­quanto me observava, sua cauda se agitava de um lado para outro.
Fiquei muito tempo tentando acertar o padrão das listras, pois o Sr. Davis me contara que não havia dois tigres com o mesmo padrão. Disse que as listras eram tão distintivas quanto as impressões digitais humanas.
Continuei a falar com ele enquanto desenhava.
-  Como é mesmo o seu nome? Ah, Dhiren. Bem, vou chamá-lo apenas de Ren. Espero que não se importe. Então, tudo bem com você? Gostou do café da manhã? Sabe, para uma coisa que poderia me comer, você tem um rosto muito bonito.
Depois de um silencioso intervalo no qual os únicos sons que se ouviam eram o do lápis arranhando o papel e o da respiração profunda e ritmada do grande animal, perguntei:
-  Você gosta de ser um tigre de circo? Não deve ser muito emocionante ficar preso nessa jaula o tempo todo.
Fiquei em silêncio por algum tempo e mordi o lábio enquanto escurecia as listras de seu rosto.
-  Gosta de poesia? Vou trazer meu livro de poemas e ler para você um dia. Acho que tem um sobre gatos que você vai adorar.
Ergui os olhos do desenho e fiquei surpresa ao ver que o tigre havia se mexido. Ele estava sentado, a cabeça abaixada na minha direção, e me olhava fixamente. Comecei a me sentir um pouco nervosa. Um grande felino fitando você deforma intensa não pode ser um bom sinal.
Nesse exato momento, o pai de Matt entrou no galpão. O tigre deixou-se cair de lado, mas manteve o rosto voltado para mim, observando-me com aqueles olhos azuis intensos.
-  Oi, menina. Como vai?
-  Tudo certo. Ah, tenho uma pergunta. Ele não se sente só? Vocês já ten­taram encontrar uma namorada para ele?
Ele riu.
-  Não para este aí. Ele gosta de ficar sozinho. No outro circo me contaram que tentaram cruzá-lo com uma fêmea branca do zoológico que estava no cio, mas ele não quis nada com ela. Até parou de comer e acabaram tirando-o de lá. Acho que ele prefere o celibato.
-  Bem, é melhor eu sair para ajudar o Matt nos preparativos do jantar.
Fechei o diário e apanhei minhas coisas. Enquanto eu me dirigia ao edifí­cio principal, meus pensamentos se voltaram para o tigre. Pobrezinho. Com­pletamente só, sem uma tigresa ou filhotinhos. Impedido de caçar, preso aqui no cativeiro. Fiquei triste por ele.
Depois do jantar, ajudei o pai de Matt a levar os cães para outro passeio e em seguida me preparei para dormir. Pus as mãos sob a cabeça e fiquei olhando para o teto da tenda, pensando um pouco mais no tigre. Depois de me revirar de um lado para outro por uns 20 minutos, decidi ir até o galpão de novo. Mantive todas as luzes apagadas, exceto a que ficava perto da jaula, e segui para meu fardo de feno com a colcha.
Eu me sentia sentimental e por isso levara comigo um exemplar de Romeu e Julieta.
-  Oi, Ren. Quer que eu leia um pouco para você? Bem, não existem tigres na história de Romeu e Julieta, mas, quando Romeu subir em uma sacada, você pode se imaginar subindo em uma árvore, está bem? Espere um se­gundo. Vou criar a atmosfera adequada.
Era noite de lua cheia, então apaguei a luz, já que o luar entrando pelas duas janelas altas iluminava o suficiente do galpão para que eu pudesse ler.
A cauda do tigre batia na base de madeira do vagão. Virei-me de lado, improvisei um travesseiro com o feno e comecei a ler em voz alta. Eu só conseguia distinguir-lhe o perfil e ver seus olhos brilhando na luz espectral. Comecei a me sentir cansada e suspirei.
-  Ah, não se fazem mais homens como Romeu. Talvez um homem assim nunca tenha existido. Exceto pela minha presente companhia, é claro. Tenho certeza de que você é um tigre muito romântico. Shakespeare sabia mesmo escrever sobre homens sonhadores, não é?
Fechei os olhos para descansar um pouco e só acordei na manhã seguinte.
Daquele dia em diante, eu passava todo o meu tempo livre no galpão com Ren. Ele parecia gostar da minha presença e sempre empinava as orelhas quando eu começava a ler para ele. Importunei o pai de Matt com perguntas e mais perguntas sobre tigres até sentir que ele já estava me evitando. Mas sabia que o Sr. Davis gostava do meu trabalho.
Todo dia eu me levantava cedo para cuidar do tigre e dos cães, e todas as tardes eu me sentava perto da jaula de Ren para escrever em meu diário. À noite, levava minha colcha e um livro. Às vezes escolhia um poema e o lia em voz alta. Outras vezes, eu apenas conversava com ele.
Cerca de uma semana depois de eu começar a trabalhar no circo, Matt e eu estávamos assistindo ao espetáculo, como de costume, mas, quando chegou a hora do número de Ren, ele pareceu diferente. Depois de percorrer o túnel e entrar na jaula, correu em círculos e andou de um lado para outro diversas ve­zes. Ficava olhando para a plateia, como se estivesse procurando alguma coisa.
Por fim, imobilizou-se como uma estátua e olhou diretamente para mim. Seus olhos de tigre encontraram os meus e eu não consegui desviar o olhar. Ouvi o chicote estalar várias vezes, mas o tigre mantinha o olhar fixo em mim. Matt me cutucou e o contato visual se desfez.
-  Que coisa mais estranha - disse Matt.
-  Qual é o problema? - perguntei. - O que está acontecendo? Por que ele está olhando para nós?
Ele deu de ombros.
-  Não sei. Isso nunca aconteceu.
Ren finalmente parou de nos olhar e deu início à sua rotina. Depois de terminado o espetáculo e de eu acabar a limpeza, fui visitar Ren, que andava de um lado para outro na jaula. Quando me viu, ele se sentou, acomodou-se e pousou a cabeça sobre as patas. Fui até a jaula.
-  Oi, Ren. O que está havendo com você hoje? Estou preocupada. Espero que não esteja ficando doente nem nada.
Ele ficou descansando em silêncio, mas manteve os olhos em mim, se­guindo meus movimentos. Aproximei-me lentamente da jaula. Eu me sentia atraída pelo animal e não conseguia controlar uma compulsão muito forte e perigosa. Era um impulso quase tangível. Talvez porque eu sentisse que éramos ambos solitários ou talvez porque ele fosse uma criatura tão linda. Não sei o motivo, mas eu queria - eu precisava - tocá-lo.
Tinha noção do risco, mas não sentia medo. De alguma forma, eu sabia que ele não me machucaria, então ignorei os sinais de alerta que piscavam em minha mente. Meu coração começou a bater muito rápido. Dei mais um passo em direção à jaula e fiquei ali parada por um instante, trêmula. Ren estava totalmente imóvel. Continuava a me olhar, calmo, com seus olhos azuis.
Estendi lentamente a mão na direção da jaula, esticando os dedos até sua pata. Toquei seu pelo branco e macio com a ponta dos dedos. Ele soltou um profundo suspiro, mas não se mexeu. Ganhando coragem, pus toda a mão sobre sua pata, acariciei-a e percorri uma das listras com o dedo. Sem o menor aviso, sua cabeça se moveu na direção da minha mão. Antes que eu pudesse tirá-la da jaula, ele a lambeu. Senti cócegas.
Retirei a mão rapidamente.
-  Ren! Você me assustou! Pensei que fosse arrancar meus dedos!
Hesitante, estendi a mão, aproximando-a da jaula novamente, e sua língua rosada atravessou as grades para lambê-la. Deixei-o lamber algumas vezes e então fui até a pia e lavei a saliva de tigre.
Voltando ao meu cantinho favorito, no fardo de feno, eu disse:
-  Obrigada por não me comer.
Ele bufou levemente em resposta.
-  O que você gostaria de ler hoje? Que tal aquele poema de gato que lhe prometi?
Eu me sentei, abri o livro de poemas e encontrei a página.
-  Muito bem, aqui vai.