sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Filho Do Éden - Livro 1 Prologo


LIVRO 1
HERDEIROS DE ATLÂNTIDA
PRÓLOGO
Interior do Brasil, dias atuais
PARA A MAIORIA DOS ANJOS, O GRANDE PROBLEMA DA TERRA NÃO É A
CORRUPÇÃO HUMANA OU A DEGRADAÇÃO SOCIAL. É O CHEIRO.
Levih e Urakin se acomodaram na mesa do restaurante, uma espelunca
à beira da estrada, nos fundos de um posto de gasolina
decadente, de paredes enegrecidas pela poluição dos caminhões e
janelas embaçadas com a gordura das frigideiras. Era noite e o
pavilhão estava agitado. Carreteiros, passageiros de ônibus e
funcionários de transportadoras comiam e bebiam, naquela que era
a última parada rodoviária em quilômetros. O chão, coberto de
marcas de óleo, escorregava a cada passo. No ar, o odor de
combustível se misturava ao fedor de urina, que escapava
intermitentemente do banheiro sem portas. Sob o balcão, sanduíches
e salgados eram expostos numa estufa gelada, atraindo insetos
ao banquete noturno.
Levih, acomodado à direita da mesa, era uma exceção entre os alados.
Conhecido como Amigo dos Homens, pertencia à casta dos
ofanins, a ordem dos anjos protetores, defensores da espécie
mortal. Vagara pelo mundo ajudando em causas humanitárias,
dando alimento espiritual aos desesperados, tentando afastá-los da
perversão. Seu rosto era jovem, de olhos azuis e dentes muito
brancos, que se destacavam na expressão sorridente. Os cabelos
cobriam a testa numa franja grisalha, e os fios cinzentos tornavam
difícil saber se tinha 20, 30 ou 40 anos. A barba da mesma cor
corria rala em volta do queixo, e a falta de bigode revelava uma
constituição delicada. Vestia calça azul, camisa bege e um paletó
verde-musgo, de um tecido tão fino que fazia lembrar um jaleco. O
corpo magro combinava com a pele clara, o nariz arguto e as
bochechas rosadas.
Acomodado à sua frente, Urakin, Punho de Deus, não tinha a mesma
opinião acerca dos homens. Era um querubim, um anjo
guerreiro, e não apreciava toda aquela desordem. Alto e
musculoso, de corpo forte e quadrado, era fácil confundi-lo com
um lutador peso-pesado, ou mesmo com um caminhoneiro malencarado.
A expressão robótica assustava, realçando ainda mais a
cicatriz no supercílio. O pescoço grosso terminava numa face
redonda, de cabelos raspados, orelhas pequenas e cavanhaque
curtíssimo. Usava coturnos, camiseta escura e uma japona marrom,
com o capuz cáqui jogado para trás.
Um grupo de motoristas embriagados começou a cantar o hino de
um clube esportivo. A chuva parou, silenciando os pingos no teto
de fibra. Uma música antiga tocava repetidamente no rádio do bar:
"Can't Take my Eyes off You".
 Então, você é o líder da missão? - perguntou Urakin, com os
olhos fixos em Levih. Sua voz era áspera e ele falava
pausadamente, ainda pouco confortável com a recémmaterializada
forma física, que os celestes chamavam de avatar.
 É o que parece - Levih respondeu, agradável. Olhou sobre as
cabeças, como se procurasse alguém que estava para chegar. - É
curioso. Uma formação nada usual.
 Como? - O comentário não fazia sentido.
 Nossas castas. Um baralho de opostos. Já pensou como isso é
raro?
 Não fui recrutado para pensar - foi a resposta. - O que estamos
esperando?
 O meu sanduíche - mas, ao entender a impaciência do colega,
acrescentou:
 Estou calculando qual seria a melhor rota até o nosso destino.
 Você conseguiu um carro. - Através da janela, podia-se ver um
velho utilitário estacionado num terreno baldio, quase no meio do
mato, a oeste da parada de ônibus. - Já caminha na Haled faz muito
tempo?
 Levih sorriu e, apesar da aparência adulta, tinha algo de
infantil no rosto. Os ofanins são essencialmente bondosos, tão
amáveis que muitas vezes beiram a ingenuidade.
 Algum tempo.
 Um homem de avental amarelado avisou que o sanduíche saíra
da chapa: pão francês com queijo e manteiga. Levih buscou o
prato, voltou à mesa e abriu um guia rodoviário, enquanto enfiava
um canudo na latinha de refrigerante.
 Não sei como aguenta comer essa porcaria - Urakin parecia
enojado.
 A gente se acostuma - Levih retrucou, sem dar muita
importância. Indicou com o dedo um ponto no papel. - Já esteve
aqui?
 Santa Helena? - Era o nome que constava no mapa. - Nunca
ouvi falar.
 Também não. - O ofanim fechou o guia e o arrastou para o
canto da mesa. - Agora, diga-me. Como pode ter acontecido? Dois
celestiais, sendo um deles um arconte, desaparecerem sem deixar
vestígios?
 Essa é a nossa missão?
 Resgatá-los. Por isso viemos. - Bebeu um gole do refresco e deu
uma mordida generosa no pão com queijo. - Kaira, Centelha
Divina, uma ishim mestre na província do fogo, e Zarion, o
querubim que a protegia. Sumiram nesta cercania há dois anos,
talvez um pouco mais.
 E por que só nos mandaram agora?
 Por que você acha? - Levih inclinou o corpo para frente e
sussurrou, como quem partilha um segredo. - Não deveríamos
estar aqui. Eles não deveriam ter estado aqui. Temos uma trégua,
esqueceu?
 Duvido que Gabriel tenha quebrado o armistício. - Ele
confiava em seu comandante. - E o que faremos após encontrá-los?
 Fui orientado a dar prosseguimento à missão original, estejam
eles vivos ou mortos.
 E você sabe o que, ou quem, eles estavam perseguindo?
Levih ia responder, mas se calou. Dois homens com farda da polícia
militar entraram no salão. Seus uniformes eram azul-marinho e
usavam coletes à prova de bala. No cinturão, traziam pistolas de
grosso calibre, rádio, cassetete, algemas e munição para as armas.
Foram direto para a mesa dos anjos, sem ao menos olhar ao redor.
 Eu cuido disso - avisou o Amigo dos Homens, no momento em
que o guarda se aproximou para abordá-lo.
 Boa noite, amigo. - O policial não esperou Levih responder. -
O carro lá fora é seu? - e mostrou o automóvel estacionado no
pátio.
 É de um colega.
 Eu quis dizer isso. - O segundo policial não desgrudava a
atenção de Urakin. - Vai ter que vir comigo.
 Algum problema?
 Nada grave. Preciso checar os documentos. Só queremos
verificar...
 Vamos acabar logo com isso. - O Punho de Deus se levantou.
Levih devorou o resto do sanduíche e os seguiu, limpando os dedos
em guardanapos de papel barato. Estava confiante em resolver o
impasse, afinal a persuasão é uma característica inata da casta. Eles
a usam para provocar reações emocionais, converter espíritos
malignos e conduzir seres humanos ao caminho da redenção.
Urakin continuava em alerta enquanto saíam do restaurante. Os
guardas não o assustavam, mas havia algo de estranho na maneira
como andavam - ele não sabia dizer o que era. E havia um cheiro
desagradável.
Na parte anterior do terreno baldio estava estacionada uma viatura
policial, de portas abertas, bloqueando a saída do utilitário. Ao
volante os aguardava um oficial graduado, exibindo insígnia de
capitão, com a mesma farda de seus companheiros. Enfiada no
coldre, sua pistola não era própria da instituição - era uma SIGSauer
calibre 45 ACP, cromada, com a coronha e o gatilho pretos,
um equipamento caro e bastante incomum. Levih calculou que
tinha 35 anos, talvez um pouco menos. Mas, apesar de ser um
agente da lei, demonstrava expressão de bandido. O corpo era
típico dos militares, com os antebraços especialmente largos. Os
olhos eram negros e sombrios, delineados por sobrancelhas pretas.
Os cabelos, igualmente escuros, estavam parcialmente escondidos
sob a boina. Levantou-se imediatamente ao vê-los chegar. Encarou
os celestes, examinando-os por vários segundos. Arrostou Urakin
num gesto de desafio, para a seguir anunciar, como um juiz que lê
a sentença:
 Este carro foi dado como roubado. Estamos atrás do ladrão.
Onde estão os documentos?
Pelo tom, Levih entendeu que a acusação era séria. Os ofanins não
aprovam a violência, mas ele sabia exatamente o que fazer.
 Capitão, eu e o meu amigo estamos muito cansados - argumentou.
- E temos pressa. Estou certo de que entende isso. Agora, por
que não esquece este mal-entendido e tira a viatura de nosso
caminho? Seria de imensa ajuda, e ficaríamos eternamente
agradecidos.
Normalmente, Levih não teria problemas em persuadir qualquer
homem mortal, mas o agente estava irredutível. Franziu a testa e
pousou a mão sobre a coronha.
 Também temos pressa, companheiro.
Com um instante de diferença, Urakin previu o ataque. Escutou
quando os dois policiais mais atrás sacaram suas armas e decidiu
reagir, como faria qualquer bom soldado. Estendeu a mão e tocou a
maçaneta do utilitário, muito próximo a ele. Puxou a porta com
violência e as dobradiças se partiram, rasgando o metal num
trovejo. No mesmo impulso, transformou a peça em porrete,
golpeando um dos oficiais bem na testa. Antes que o primeiro deles
pudesse disparar, a espinha se quebrou com o choque - o corpo
desabou inerte, esparramado ao lado de um arbusto, quando o
outro guarda puxou o gatilho.
Levih estava paralisado, impressionado demais para reagir. O código
de sua casta o impedia de ferir qualquer criatura, especialmente
seres humanos, mesmo em defesa própria.
Urakin ouviu um estalo e sentiu duas balas lhe atravessarem a carne
- uma entrou pelo ombro e a segunda trespassou o estômago,
feliz- mente longe do coração. Vigoroso, lançou-se à batalha e,
como um urso, agarrou o atirador pelas têmporas, suspendendo-o
com ambas as mãos.
O capitão não estava alheio ao combate, mas preferiu recuar, para
só então puxar a pistola. Por sorte, a espoleta falhou, e, ao ver o
estrago que o querubim provocara, ele saiu correndo, tomando
distância dos anjos.
 Vá pegá-lo! - gritou o Punho de Deus, mas Levih se recusou.
 Pare com isto. É uma ordem! - Ele não tolerava assassinatos.
 Ainda acha que... - Urakin esmigalhou o pescoço - eles são
humanos? - Quando a vítima morreu, ele a largou sobre o solo
para, num movimento automático, remover-lhe o coração.
Reparando mais atentamente, os dois cadáveres eram distintos dos
defuntos comuns. Os corpos começaram a murchar, como se os
órgãos, o sangue e até os ossos estivessem secando. Restou, dali a
poucos segundos, uma mancha de excrementos, borbulhando
dentro de uma casca enegrecida, que foi diminuindo até esfriar.
 Raptores - murmurou o Amigo dos Homens. - Como nos
acharam?
 É o trabalho deles - raciocinou o Punho de Deus.
 Como soube?
Urakin caminhou até a parte posterior da viatura, ainda com as luzes
de alerta piscando. Abriu o porta-malas, rompendo a tranca
com sua força sobre-humana. Três homens jaziam mortos,
amontoados no bagageiro. Suas fardas e sua aparência eram as
mesmas das entidades que os haviam agredido.
 Senti cheiro de carne podre.
 Levih deu uma boa olhada nos policiais falecidos.
 Que diabrura! Eles copiam perfeitamente a forma humana.
 Qualquer forma - Urakin corrigiu. - Já enfrentei alguns deles
antes - fechou o porta-malas. Sua natureza guerreira clamava por
mais ação. - Vamos ficar parados? O chefe deles ainda pode estar
ao nosso alcance.
 Melhor deixarmos que ele fuja - decidiu o ofanim. Era o líder,
por enquanto, - Esse incidente não tem nada a ver com a nossa
missão. Os raptores andam por aí a caçar anjos perdidos. Uma
lástima que nos tenham localizado. Mas não podemos deixar que
contratempos assim nos atrasem.
 Como preferir. - Os querubins são práticos em seus objetivos e
perfeitamente leais.
Urakin respirou fundo e só então notou quanto sagrava. Os tiros
não o matariam, mas o haviam deixado exausto - ele precisava se
alimentar.
 Sabe aquele sanduíche nojento? - continuou o guerreiro,
apoiando a mão no ombro do pequeno Levih. - Acho que vou
aceitar.

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