3
As
crianças deixaram o circo fazendo um tumulto estridente. Um ônibus deu a
partida no estacionamento. Enquanto ele despertava ruidosamente, sibilando e soltando fumaça pelo cano de descarga, Matt se levantou
e espreguiçou-se.
- Pronta para o trabalho de verdade?
Gemi,
sentindo os músculos dos braços já doloridos.
- Claro. Vamos lá.
Ele
começou a limpar a sujeira das cadeiras, que eu ia empurrando contra a parede.
Depois me entregou uma vassoura.
- Agora temos que varrer a área
toda, guardar tudo nas caixas e então arrumá-las novamente. Você começa
enquanto vou entregar o dinheiro ao Sr. Maurizio.
- Sem problemas.
Comecei
a percorrer o lugar lentamente, empurrando a vassoura à minha frente. Minha
mente voltou aos números circenses que eu vira. Gostara mais dos cães, mas
havia algo de irresistível no tigre. Meus pensamentos continuavam voltando ao
grande felino.
Como será ele de perto? E por que
cheira a sândalo? Eu nada sabia sobre tigres, exceto
o que vira tarde da noite nos canais de documentários e lera em exemplares
antigos da National Geographic. Eu nunca havia me interessado por tigres, mas, por outro lado, também
nunca trabalhara em um circo.
Eu
já tinha quase terminado de varrer quando Matt voltou. Ele se abaixou para me
ajudar a recolher o gigantesco monte de lixo antes de passarmos uma boa hora
arrumando caixas e arrastando-as de volta ao depósito.
Com
esse trabalho pronto, Matt me disse que eu podia ter uma ou duas horas de folga até a hora de me juntar à trupe para o
jantar. Eu estava ansiosa para ter algum tempo para mim, assim corri de volta à
tenda.
Troquei de roupa,
encontrei um lugar apenas ligeiramente desconfortável na cama e peguei meu
diário. Enquanto mordiscava a caneta, eu refletia sobre as
pessoas interessantes que havia conhecido ali. Estava claro que o pessoal do
circo se considerava uma família. Várias vezes vi as pessoas oferecendo ajuda,
mesmo que não fosse tarefa sua. Também escrevi um pouco sobre o tigre. O felino
realmente chamou minha atenção.
Talvez eu devesse trabalhar com animais e estudá-los na faculdade,
pensei. Então me lembrei de minha extrema aversão a biologia e soube que eu
nunca me daria bem naquela área.
Estava quase na hora do
jantar. O cheiro delicioso vindo do prédio maior fez minha boca se encher de
água.
Nada parecido
com os biscoitos vegans de
Sarah, pensei. Na verdade,
lembra a comida da minha avó.
Lá dentro, Matt arrumava
as cadeiras em torno de oito mesas dobráveis compridas. Uma das mesas estava
posta com comida italiana. O aspecto era fantástico. Ofereci ajuda, mas Matt me
dispensou.
- Você trabalhou duro hoje, Kelsey. Relaxe. Eu faço isso
- disse ele.
Cathleen acenou, me
chamando.
- Venha se sentar comigo. Só podemos começar a comer
depois que o Sr. Maurizio fizer os anúncios da noite.
E, no momento em que nos
sentamos, o Sr. Maurizio entrou dramaticamente no recinto.
- Favolosa performance,
de todos vocês! E um trabalho
eccellente de nossa mais nova vendedora, hein? Esta noite é uma
celebração! Encham os pratos, mia
famiglia!
Dei uma risadinha. Hum. Ele representa o papel o tempo todo, não só durante
o espetáculo.
Virei-me
para Cathleen.
- Acho que isso quer dizer que fizemos um bom trabalho,
não é?
- É, sim. Vamos comer! - respondeu
ela.
Entrei na fila com
Cathleen, peguei meu prato de papel e o enchi com salada verde italiana, uma
boa colherada de massa em formato de conchas recheadas com espinafre e queijo
cobertas com molho de tomate, frango à parmegiana e, sem ter lugar suficiente
no prato, enfiei um pão quente na boca, peguei uma garrafa de água e me sentei.
Não pude deixar de notar a grande
cheesecake de chocolate para a sobremesa, mas não consegui nem
terminar a comida que tinha no prato.
Depois do jantar, fui até
um canto mais silencioso do prédio e liguei para dar notícias a Sarah e Mike.
Quando desliguei, aproximei-me
de Matt, que guardava as sobras na geladeira.
- Não vi seu pai no jantar. Ele não come?
- Levei um prato para ele. Estava ocupado com o tigre.
- Há quanto tempo seu pai trabalha com aquele tigre? - perguntei, curiosa.
- Segundo a descrição do emprego, devo ajudá-lo com
isso.
Matt empurrou para o lado
uma garrafa meio vazia de suco de laranja, enfiou uma caixa de comida para
viagem ao lado dela e fechou a geladeira.
- Há uns cinco anos, mais ou menos. O Sr. Maurizio
comprou o tigre de outro circo, que o havia comprado de outro circo antes.
Ninguém conhece a história completa dele. Papai diz que o tigre faz só os
truques básicos e se recusa a aprender qualquer coisa nova, mas o lado bom é
que ele nunca deu nenhum problema. É uma fera tranquila, quase dócil, tanto
quanto os tigres podem ser.
- Então, o que eu tenho que fazer? Vou mesmo dar comida
a ele?
- Não se preocupe. Não é assim tão difícil, desde que
você evite as presas
- zombou Matt. - Estou brincando. Você só
vai levar a comida do tigre de um prédio ao outro. Converse com meu pai amanhã.
Ele dará todas as informações de que precisa.
- Obrigada, Matt!
Ainda restava uma hora de
luz do dia lá fora, mas eu teria que levantar cedo outra vez. Depois de tomar
um banho, escovar os dentes, vestir meu pijama de flanela quentinho e calçar os
chinelos, corri para minha tenda e me aconcheguei sob a colcha da minha avó.
Ler um capítulo do livro que eu trouxera me deixou sonolenta e logo mergulhei
em um sono profundo.
Na manhã seguinte, após o
café, corri até o canil e encontrei o pai de Matt brincando com os cães.
Parecia uma versão adulta de Matt, com os mesmos cabelos e olhos castanhos. Ele
se voltou para mim quando me aproximei e disse:
- Olá. Você é a Kelsey, certo? Será minha assistente
hoje.
- Sim, senhor.
Ele apertou minha mão com
simpatia e sorriu.
- Pode me chamar de Andrew ou Sr. Davis, se preferir
algo mais formal.
A
primeira coisa que precisamos fazer é levar estas criaturinhas cheias de
energia para dar uma volta.
- Parece bastante fácil.
Ele
riu.
- Veremos.
O
Sr. Davis me deu guias para prender nas coleiras de cinco cães. Os animais eram de uma interessante
variedade de raças. Tinha um beagle, um mestiço de galgo, um buldogue,
um dinamarquês e um poodlezinho preto. Eles saltitavam o
tempo todo, enroscando as guias uns nos outros - e em mim. O Sr. Davis se abaixou para me ajudar e então partimos.
O
dia estava lindo. Os cães pareciam muito felizes, saltando de um lado para
outro e me puxando em todas as direções, exceto naquela que eu queria seguir.
Enquanto
eu desvencilhava um deles de uma árvore, indaguei ao Sr. Davis:
- Posso fazer algumas perguntas
sobre o seu tigre?
- Claro.
- Matt disse que vocês não sabem
muito sobre a história dele. Como Dhiren veio parar no circo?
O
pai de Matt esfregou o queixo coberto pela barba espetada e disse:
- O Sr. Maurizio comprou Dhiren de outro circo pequeno, querendo dar uma renovada no
espetáculo. Pensou que, como eu trabalhava bem com outros animais, faria o
mesmo com o tigre. Fomos muito ingênuos. Em geral é preciso muito treinamento
para trabalhar com grandes felinos. O Sr. Maurizio insistiu
que eu tentasse e, felizmente, nosso tigre é bastante tranquilo.
- Que sorte, hein?
- Muita sorte. Eu era extremamente
despreparado para assumir um animal daquele tamanho, por isso viajei com o
outro circo por um tempo. O domador deles me ensinou a lidar com o tigre e eu
aprendi a cuidar do animal. Acho que não teria sido capaz de lidar com
qualquer outro dos felinos que eles estavam vendendo.
- Imagino.
- Até tentaram fazer com que eu me
interessasse por um dos tigres siberianos, mais agressivo, mas logo percebi que
ele não era para nós. Então negociei o tigre branco. Seu temperamento era mais
estável e ele demonstrava gostar de trabalhar comigo. Para ser sincero, nosso
tigre parece entediado a maior parte do tempo.
Ponderei essa informação
enquanto percorríamos a trilha em silêncio. Desembaraçando
os cães de outra árvore, perguntei:
- Os tigres brancos vêm da Índia? Pensei que viessem da
Sibéria.
O Sr. Davis sorriu.
- Muita gente acha que eles vêm da Rússia porque a
pelagem branca se mistura com a neve, mas os tigres siberianos são maiores e
alaranjados. O nosso é uma variante branca do tigre-de-bengala.
Ele me olhou, pensativo,
por um momento e então perguntou:
- Quer me ajudar com o tigre hoje? Não precisa ter medo.
As jaulas têm trincos de segurança e eu a supervisionarei o tempo todo.
Sorri, lembrando do doce
aroma de jasmim no fim da apresentação do tigre. Um dos cães correu em volta
das minhas pernas, me enroscando com a guia e quebrando o devaneio por um
momento.
- Gostaria muito. Obrigada! - agradeci.
Depois de terminar a
caminhada, pusemos os cães de volta no canil e demos comida a eles.
O Sr. Davis encheu o
bebedouro dos cães com água de uma mangueira verde. Então olhou por sobre o
ombro e disse:
- Sabe, os tigres podem ser completamente extintos em 10 anos. A Índia já aprovou diversas leis proibindo que sejam mortos. Os
caçadores e os aldeões são os principais envolvidos. Os tigres em geral evitam
os homens, mas são responsáveis por muitas mortes na Índia todos os anos e as
pessoas às vezes querem fazer justiça com as próprias mãos.
Nesse momento o Sr. Davis
acenou para que eu o seguisse. Demos a volta no prédio, chegando a um amplo
galpão pintado de branco com remates azuis. Ele abriu as portas largas para que
entrássemos.
O sol forte invadia e
aquecia o lugar, iluminando as partículas de poeira que subiam à medida que o
Sr. Davis e eu passávamos. Fiquei surpresa com a quantidade de luz que havia na
construção de dois andares, apesar de ali só haver duas janelas altas. Vigas
grossas erguiam-se bem acima de nossas cabeças e cruzavam o teto em arco,
e junto às paredes alinhavam-se
baias vazias onde se viam fardos de feno
empilhados até o teto. Eu o segui enquanto ele se aproximava do lindo vagão
para animais que fizera parte da apresentação do dia anterior.
Ele apanhou uma garrafa
grande de vitaminas em forma líquida e disse:
- Kelsey, quero que conheça Dhiren. Venha aqui. Vou lhe
mostrar uma coisa.
Nós
nos aproximamos da jaula. O tigre, que estivera cochilando,
ergueu a cabeça e me olhou, curioso, com seus brilhantes olhos azuis.
Aqueles olhos eram hipnóticos. Eles se fixaram em mim,
quase como se o tigre estivesse examinando a minha alma.
Uma
onda de solidão tomou conta de mim, mas me esforcei para trancá-la novamente no
cantinho onde guardo emoções desse tipo. Engoli em seco e desviei o
olhar.
O
Sr. Davis puxou uma alavanca na lateral da jaula. Um painel desceu, deslizando e isolando o lado da jaula onde Dhiren estava. O Sr. Davis abriu a porta da jaula, encheu o recipiente de água do
tigre, acrescentou cerca de um quarto de xícara de vitaminas e então fechou e
trancou a porta. Em seguida, acionou novamente a alavanca para erguer o painel
no interior da jaula outra vez.
- Tenho um pouco de trabalho
burocrático para fazer. Quero que você busque o café da manhã do tigre - instruiu
o Sr. Davis. - Volte ao edifício principal com
este carrinho e procure uma geladeira grande atrás das caixas. Tire um pacote
de carne e coloque-a no carrinho. Transfira outro pacote de carne do freezer
para a geladeira, para descongelar. Quando voltar, ponha a comida de Dhiren na jaula exatamente como fiz com as vitaminas. Mas não se esqueça de fechar o
painel de segurança primeiro. Consegue fazer isso?
Agarrei
a alça do carrinho.
- Sem problemas - falei por sobre o
ombro enquanto saía.
Encontrei
a carne rapidamente e poucos minutos depois estava de volta.
Espero que essa porta de segurança
resista ou eu serei o café da manhã, pensei ao puxar a alavanca, servir a carne crua em uma
tigela grande e deslizá-la com cuidado para dentro da jaula. Eu mantinha
um olho cauteloso no tigre, mas ele simplesmente ficou ali parado me olhando.
- Sr. Davis, esse tigre
é macho ou fêmea?
Ouviu-se
um barulho na jaula, um ronco profundo vindo do peito
do felino.
Virei-me
para olhar o tigre.
- Por que você está rugindo para
mim?
O
pai de Matt riu.
- Ah, você o ofendeu. Ele é muito
sensível, sabia? Respondendo à sua pergunta,
ele é macho.
- Humm.
Depois
que o tigre comeu, o Sr. Davis sugeriu que eu observasse o animal
praticar seu número. Fechamos as portas do galpão e
deslizamos as traves de madeira para trancá-las e impedir que o tigre
escapasse. Então subi a escada de mão até o mezanino para assistir de cima. Se
alguma coisa desse errado, o Sr. Davis me instruíra a sair pela janela e chamar
o Sr. Maurizio.
O pai de Matt se aproximou
da jaula, abriu a porta e chamou Dhiren. O tigre olhou para ele e então pôs a
cabeça de volta sobre as patas, sonolento. O Sr. Davis tornou a chamá-lo.
- Venha!
A boca do tigre se abriu
em um bocejo e suas mandíbulas se escancararam. Estremeci ao ver os dentes
imensos. Ele se levantou e esticou as patas dianteiras e em seguida as
traseiras, uma de cada vez. Ri ao comparar mentalmente esse grande predador
com um gatinho dorminhoco. O tigre deu meia-volta e desceu pela rampa, saindo
da jaula.
Depois de ajeitar uma
banqueta, o Sr. Davis estalou o chicote, instruindo Dhiren a saltar. Então
pegou a argola e fez o tigre pular por ela durante vários minutos. O animal
saltava de um lado para outro, passando com facilidade pelas várias atividades. Seus movimentos não demonstravam o menor esforço. Eu podia ver seus
músculos vigorosos movendo-se sob o pelo listrado preto e branco enquanto
praticava o seu número.
O Sr. Davis parecia um
bom domador, mas por uma ou duas vezes percebi que o tigre podia ter levado a melhor
sobre ele. Num dado momento, o rosto do Sr. Davis ficou muito perto das garras
estendidas do tigre e teria sido muito fácil para o animal atingi-lo, mas, em
vez disso, ele tirou a pata do caminho. Em outra ocasião, eu podia jurar que o
Sr. Davis havia pisado em sua cauda, no entanto, o tigre apenas grunhiu
suavemente e deslizou a cauda para o lado. Aquilo era muito estranho e eu me vi
ainda mais fascinada pelo belo animal, imaginando como seria tocá-lo.
O galpão estava abafado e
o Sr. Davis transpirava visivelmente. Ele incitou o tigre a voltar para a
banqueta e então dispôs mais três banquetas perto da primeira e o fez saltar de
uma para outra. Ao terminar, levou o felino de volta para a jaula, deu-lhe um petisco especial e fez sinal para que eu descesse.
- Kelsey, é melhor você ir para o edifício principal e
ajudar Matt a se preparar para o espetáculo. Hoje teremos
um grupo da terceira idade vindo de um centro comunitário.
Desci a escada.
- Tudo bem se eu trouxer meu diário até aqui para
escrever de vez em quando? Quero desenhar o tigre.
- Tudo bem - disse ele. - Só não
chegue muito perto.
Saí
correndo do galpão, acenei para ele e gritei:
- Obrigada por me deixar assistir ao
ensaio. Foi muito emocionante!
Cheguei
correndo para ajudar Matt no momento em que o primeiro ônibus parava no
estacionamento. Foi exatamente o oposto do dia anterior. Primeiro, a mulher
responsável pelo grupo comprou todos os ingressos de uma vez só, o que tornou
meu trabalho muito mais fácil, e então todos os espectadores se dirigiram
devagar para dentro, acomodaram-se em seus lugares e logo caíram no sono.
Como eles podem dormir em meio a
todo esse barulho?
No intervalo, não havia muito a fazer. Metade dos espectadores ainda estava
dormindo, e a outra metade aguardava na fila do banheiro. Na verdade, ninguém
comprou nada.
Depois
do espetáculo, Matt e eu limpamos tudo num piscar de olhos, o que me deu
algumas horas de folga. Corri de volta para a cama, peguei meu diário, uma
caneta, um lápis e minha colcha e me dirigi ao galpão. Abri a pesada porta e
acendi as luzes.
Fui
andando até a jaula do tigre e o encontrei descansando
com a cabeça apoiada nas patas. Dois fardos de feno formavam uma
boa cadeira com espaldar. Abri a colcha sobre o colo e
peguei o diário. Depois de escrever alguns parágrafos, comecei a desenhar.
Tivera
aulas de arte no ensino médio e meus desenhos com modelo eram bastante
razoáveis. Peguei o lápis e olhei para o tigre. Ele me encarava - mas não como
se quisesse me devorar. Era mais como... como se estivesse tentando me dizer
alguma coisa.
- Oi. Está olhando o quê? -
perguntei, sorrindo.
Voltei
ao desenho. Os olhos redondos do tigre eram bem separados e de um azul intenso.
Ele tinha cílios longos e negros, e um focinho rosado. Seu pelo era de um branco leitoso, com riscas
negras propagando-se a partir da testa e da face até a cauda. As orelhas curtas
e peludas estavam inclinadas na minha direção e sua cabeça
descansava preguiçosamente nas patas. Enquanto me observava, sua cauda se
agitava de um lado para outro.
Fiquei
muito tempo tentando acertar o padrão das listras, pois o Sr. Davis me contara que não havia dois tigres com o mesmo padrão. Disse que as
listras eram tão distintivas quanto as impressões digitais humanas.
Continuei
a falar com ele enquanto desenhava.
- Como é mesmo o seu nome? Ah,
Dhiren. Bem, vou chamá-lo apenas de Ren. Espero que não se importe. Então, tudo
bem com você? Gostou do café da manhã? Sabe, para uma coisa que poderia me
comer, você tem um rosto muito bonito.
Depois
de um silencioso intervalo no qual os únicos sons que se ouviam eram o do lápis
arranhando o papel e o da respiração profunda e ritmada do grande animal,
perguntei:
- Você gosta de ser um tigre de
circo? Não deve ser muito emocionante ficar preso nessa jaula o tempo
todo.
Fiquei
em silêncio por algum tempo e mordi o lábio enquanto escurecia as listras de
seu rosto.
- Gosta de poesia? Vou trazer meu
livro de poemas e ler para você um dia. Acho que tem um sobre gatos que você
vai adorar.
Ergui
os olhos do desenho e fiquei surpresa ao ver que o tigre havia se mexido. Ele
estava sentado, a cabeça abaixada na minha direção, e me olhava fixamente.
Comecei a me sentir um pouco nervosa.
Um grande felino fitando você deforma intensa não pode ser um bom sinal.
Nesse
exato momento, o pai de Matt entrou no galpão. O tigre deixou-se cair de lado,
mas manteve o rosto voltado para mim, observando-me com aqueles olhos azuis
intensos.
- Oi, menina. Como vai?
- Tudo certo. Ah, tenho uma
pergunta. Ele não se sente só? Vocês já tentaram encontrar uma namorada para ele?
Ele
riu.
- Não para este aí. Ele gosta de
ficar sozinho. No outro circo me contaram que tentaram cruzá-lo com uma fêmea
branca do zoológico que estava no cio, mas ele não quis nada com ela. Até parou
de comer e acabaram tirando-o de lá. Acho que ele prefere o celibato.
- Bem, é melhor eu sair para ajudar
o Matt nos preparativos do jantar.
Fechei
o diário e apanhei minhas coisas. Enquanto eu me dirigia ao edifício
principal, meus pensamentos se voltaram para o tigre. Pobrezinho. Completamente só, sem uma tigresa ou
filhotinhos. Impedido de caçar, preso aqui no cativeiro. Fiquei
triste por ele.
Depois
do jantar, ajudei o pai de Matt a levar os cães para outro passeio e em seguida
me preparei para dormir. Pus as mãos sob a cabeça e fiquei olhando para o teto
da tenda, pensando um pouco mais no tigre. Depois de me revirar de um lado para
outro por uns 20 minutos, decidi ir até o galpão de novo. Mantive todas as
luzes apagadas, exceto a que ficava perto da jaula, e segui
para meu fardo de feno com a colcha.
Eu
me sentia sentimental e por isso levara comigo um exemplar de Romeu e Julieta.
- Oi, Ren. Quer que eu leia um pouco
para você? Bem, não existem tigres na história de Romeu e Julieta, mas,
quando Romeu subir em uma sacada, você pode se imaginar subindo em uma árvore,
está bem? Espere um segundo. Vou criar a atmosfera adequada.
Era
noite de lua cheia, então apaguei a luz, já que o luar entrando pelas duas
janelas altas iluminava o suficiente do galpão para que eu pudesse ler.
A
cauda do tigre batia na base de madeira do vagão. Virei-me de lado, improvisei
um travesseiro com o feno e comecei a ler em voz alta. Eu só
conseguia distinguir-lhe o perfil e ver seus olhos brilhando na luz espectral.
Comecei a me sentir cansada e suspirei.
- Ah, não se fazem mais homens como
Romeu. Talvez um homem assim nunca tenha existido. Exceto pela minha presente
companhia, é claro. Tenho certeza de que você é um tigre muito romântico. Shakespeare sabia mesmo escrever sobre homens sonhadores, não é?
Fechei
os olhos para descansar um pouco e só acordei na manhã seguinte.
Daquele
dia em diante, eu passava todo o meu tempo livre no galpão com Ren. Ele parecia
gostar da minha presença e sempre empinava as orelhas quando eu começava a
ler para ele. Importunei o pai de Matt com perguntas e mais perguntas sobre
tigres até sentir que ele já estava me evitando. Mas sabia que o Sr. Davis gostava do meu trabalho.
Todo
dia eu me levantava cedo para cuidar do tigre e dos cães, e todas as tardes eu
me sentava perto da jaula de Ren para escrever em meu
diário. À noite, levava minha colcha e um livro. Às vezes escolhia um poema e o
lia em voz alta. Outras vezes, eu apenas conversava com ele.
Cerca
de uma semana depois de eu começar a trabalhar no circo, Matt e eu estávamos
assistindo ao espetáculo, como de costume, mas, quando chegou a hora do número
de Ren, ele pareceu diferente. Depois de percorrer o túnel e entrar na jaula, correu em círculos e andou de um lado para outro diversas
vezes. Ficava olhando para a plateia, como se estivesse procurando alguma
coisa.
Por
fim, imobilizou-se como uma estátua e olhou diretamente para mim. Seus olhos de
tigre encontraram os meus e eu não consegui desviar o olhar. Ouvi o chicote
estalar várias vezes, mas o tigre mantinha o olhar fixo em mim. Matt me cutucou e o
contato visual se desfez.
- Que coisa mais estranha - disse
Matt.
- Qual é o problema? - perguntei. -
O que está acontecendo? Por que ele está olhando para nós?
Ele
deu de ombros.
- Não sei. Isso nunca aconteceu.
Ren
finalmente parou de nos olhar e deu início à sua rotina. Depois de terminado o
espetáculo e de eu acabar a limpeza, fui visitar Ren, que andava de um lado
para outro na jaula. Quando me viu, ele se sentou,
acomodou-se e pousou a cabeça sobre as patas. Fui até a jaula.
- Oi, Ren. O que está havendo com você
hoje? Estou preocupada. Espero que não esteja ficando doente nem nada.
Ele
ficou descansando em silêncio, mas manteve os olhos em mim, seguindo meus
movimentos. Aproximei-me lentamente da jaula.
Eu me sentia atraída
pelo animal e não conseguia controlar uma compulsão muito forte e perigosa. Era
um impulso quase tangível. Talvez porque eu sentisse que éramos ambos
solitários ou talvez porque ele fosse uma criatura tão linda. Não sei o motivo,
mas eu queria - eu precisava -
tocá-lo.
Tinha
noção do risco, mas não sentia medo. De alguma forma, eu sabia que ele não me
machucaria, então ignorei os sinais de alerta que piscavam em minha mente. Meu
coração começou a bater muito rápido. Dei mais um passo em direção à jaula e fiquei ali parada por um instante, trêmula. Ren estava totalmente
imóvel. Continuava a me olhar, calmo, com seus olhos azuis.
Estendi
lentamente a mão na direção da jaula, esticando os dedos até sua pata.
Toquei seu pelo branco e macio com a ponta dos dedos. Ele soltou um profundo
suspiro, mas não se mexeu. Ganhando coragem, pus toda a mão sobre sua pata,
acariciei-a e percorri uma das listras com o dedo. Sem o menor aviso, sua
cabeça se moveu na direção da minha mão. Antes que eu pudesse tirá-la da jaula, ele a lambeu. Senti cócegas.
Retirei
a mão rapidamente.
- Ren! Você me assustou! Pensei que
fosse arrancar meus dedos!
Hesitante,
estendi a mão, aproximando-a da jaula novamente, e sua língua rosada
atravessou as grades para lambê-la. Deixei-o lamber algumas vezes e então fui
até a pia e lavei a saliva de tigre.
Voltando
ao meu cantinho favorito, no fardo de feno, eu disse:
- Obrigada por não me comer.
Ele
bufou levemente em resposta.
- O que você gostaria de ler hoje?
Que tal aquele poema de gato que lhe prometi?
Eu
me sentei, abri o livro de poemas e encontrei a página.
- Muito bem, aqui vai.
Nenhum comentário:
Postar um comentário